Time 10 e as 3 pioneiras: Primeira Geração – O cooperativismo habitacional no Uruguai é hoje a modalidade de cooperativismo mais expressiva de todas, porém não é a única. Esse sistema transcende a questão da habitação e torna-se especialmente relevante na primeira metade do século XX: a empresa de transporte de ônibus de Montevidéu (CUTCSA) por exemplo, inicia seus trabalhos em 1937 como uma cooperativa. Em termos específicos, em 1989 foram registradas 843 cooperativas e, em 2017, este número sobe para 3.665 cooperativas em diversas áreas.
Em 1908, vivia em Montevidéu 30% da população uruguaia, e, em 1970, esse número sobe para 80%. Enquanto a nação duplicou entre 1920 e 1960, a quantidade dos imóveis nas áreas urbanas quadriplicou no mesmo período. O Uruguai viveu os anos 1950 com prosperidade. O PIB percapita do país era um dos mais altos do mundo, devido à posição de maior exportador de produtos derivados da criação de gado, principalmente o couro, carne e lã. O sucesso da pecuária incentivou a urbanização precoce do país. No entanto, daí em diante, a taxa de crescimento da urbanização fica cada vez mais estática, e a economia começa a esfriar (BARAVELLI, 2006, p. 56).
Na primeira metade da década de 60 a inflação acentuada e a recessão impossibilitaram grandes investimentos públicos em todas as áreas, e no meio da crise estava a construção civil. Consequentemente, a produção de habitação social nessa época passa a ser inexpressiva e insuficiente mesmo para os baixos índices de crescimento populacionais (NAHOUM, 2008, p.27).
Em 1966 funcionários públicos, arquitetos e parlamentares formaram aquilo que ficou conhecido como “Time 10”, e atuaram como assessores técnicos na formação das 3 cooperativas pioneiras de ajuda mútua. Esse sistema de cooperativa, de ajuda mútua é similar aos mutirões paulistanos, em que os futuros moradores (cooperativistas/ mutirantes) realizam a mão de obra da própria construção.
A Ajuda Mútua é vantajosa para famílias que não têm como investir em sua moradia a priori, mas podem pagar pequenas parcelas mensais. Tanto no caso uruguaio como no brasileiro, a não contratação de mão-de-obra é o que torna a autogestão uma forma barata de aceder à moradia digna. Apesar das falhas (processos lentos, sobretrabalho dos construtores que ocupam seu tempo livre na obra, soma de mais uma jornada de trabalho às suas rotinas) existentes em ambos os casos, o sistema ainda possui o papel de capacitar os cooperados/mutirantes, que aprendem novos ofícios, e podem ocupar novos lugares no mercado de trabalho à partir dessas experiências.
De todo caso, as três pioneiras, localizadas no interior do Uruguai, totalizaram a construção de 100 casas: a Cooperativa 25 de Mayo, na cidade de Florida; a Cooperativa Exodo Artigas, em Fray Bentos; e a COVSAM 1, na cidade de Salto (CASTILLO, 2015). Essas experiências marcam a primeira geração do cooperativismo uruguaio.
O contexto econômico da segunda metade da década de 1960, então é marcado por grave crise econômica e alto índice inflacionário. Mais precisamente, em 1967, a cotação do dólar era de 128 pesos, quando que em 1962, o mesmo equivalia a 11 pesos (BARAVELLI, 2006, p. 63). A construção civil sente o impacto da economia e a população abraça as Cooperativas de Habitação como uma saída para os déficits habitacionais, e pressionam o governo para a aprovação da legislação de Habitação Social Cooperativista.
Lei Nacional de Vivenda (1968): 2ª Geração
Somando à fama das experiências pioneiras, a possibilidade de construir habitação de baixo custo e a necessidade de atenuar a falta de moradia no país, cria-se a lei nº 13.728 de dezembro de 1968, ou Lei Nacional de Vivenda.
A lei é um marco na história do Uruguai e dá início a 2ª geração do Cooperativismo de Habitação. Diferentemente da experiência brasileira, no Uruguai, boa parte das cooperativas de habitação são de “usuários” ou “hipoteca única”. Isso significa que os cooperados nem sempre detém a posse da habitação em que vivem, mas sim o chamado “direito de uso e gozo” do espaço (privado e comum). A posse das unidades é exclusiva da cooperativa. Assim, evita-se a especulação com a venda na eventual saída de um sócio (NAHOUM, 2008, tradução da autora).
A Lei descreve ainda, que 10% da cota social dos cooperativistas sejam retidos para a cooperativa, no intuito de compor alguns fundos sociais. Um deles é o chamado “Fondo de Socorro” ou “Seguro Socorro”, responsável pela garantia das cooperativas mesmo em casos de inadimplência ou rotatividade dos moradores:
Ele serve para cobrir as prestações devidas por uma família em situação de desemprego ou enfermidade. Funciona como um seguro comunitário, capaz de atender as necessidades econômicas de uma família vulnerabilizada socialmente com mais agilidade do que um programa assistencialista e com mais eficiência do que as precauções dos contratos privados. – José Eduardo Baravelli (2006)
Estas cláusulas garantem o cooperativismo e a autogestão democrática mesmo após a obra, quando a cooperativa passa a funcionar como uma empresa de gestão, sem fins lucrativos. As bases do cooperativismo estão todas asseguradas pela legislação. Com a legitimação do sistema de construção de habitação por cooperativas, ele começa a ser reproduzido em larga escala. No entanto, logo no início desta tentativa de multiplicação, acontece o golpe militar no Uruguai, em 1973, e o novo regime tenta arduamente acabar com esse sistema. As cooperativas assumem um papel muito importante de resistência à ditadura (NAHOUM, 2008, p. 184-186).
O Regime Militar e o Cooperativismo (1973-1985): estagnação e resistência
Em 1975, o interesse populacional uruguaio pelas cooperativas de habitação era altíssimo. E, mesmo com grande interesse populacional, o governo retardava ao máximo o andamento dos processos de liberação dos terrenos, aprovação do projeto, obtenção e aprovação de crédito na tentativa de minimizar o sistema. (BARAVELLI, 2006).
Boa parte das cooperativas nasceu de movimentos sindicais e, justamente, não perderam sua organização e nem a prática da democracia. Com a crise econômica o salário mínimo estava em queda e o desemprego em alta. Os cooperativistas, juntamente com a Federação Uruguaia de Cooperativas de Vivenda por Ajuda Mútua (FUCVAM – principal movimento social de luta por moradia uruguaio), se dão conta que não seria possível continuar pagando o financiamento das habitações, e em setembro de 1983, organizam um boicote ao Banco Hipotecário Uruguaio (BHU) e deixam de pagar o reajuste de 15% do financiamento bancário, proposto pelo governo aquele ano. Foi o primeiro boicote a um órgão público uruguaio na história do país (NAHOUM, 2008, p. 111).
Respondendo a essa ameaça, o governo adquiriu uma medida para comprimir o sistema cooperativo de habitação: a chamada Lei de Propriedade Horizontal. A lei possuía dois objetivos claros: desmontar o boicote, através da mudança no regime de propriedade, que deixaria de ser coletiva para individual, e as dívidas seriam assumidas por cada núcleo familiar; e com isso aniquilaria o movimento cooperativista, já que se extinguiriam as cooperativas. Na prática, as cooperativas passaram a sofrer fortes intervenções, sendo definidas quais poderiam continuar; o cadastramento de novas cooperativas foi suspenso, cooperativistas eram perseguidos, as assembleias reprimidas, o sistema de obtenção de crédito congelado, estagnando totalmente o sistema (NAHOUM, 2008, p. 111-112).
A FUCVAM então organiza um plebiscito, que, se caso tivesse 500 mil assinaturas, a lei só poderia ser aprovada no legislativo após consulta popular (ferramenta prevista na constituição uruguaia). Em poucos dias, somados a outros movimentos populares, conseguiram colher mais de 600 mil assinaturas em apoio à propriedade coletiva nas cooperativas. Em 1984 já era visível a decadência do regime militar (BARAVELLI, 2006, p.70-71), que por sua vez, termina oficialmente em 1985.
Pós Ditadura (1990-2005): 3ª Geração
Nos anos 1980 inicia-se uma saída da população da cidade de Montevidéu e, duas décadas depois, com a séria crise econômica de 2002, os índices de desemprego chegam a 19% da população agravando ainda mais esse êxodo urbano. A cidade perdeu, em 8 anos, 18,3% da sua população, deixando a principal área histórica e turística vazia (BARAVELLI, 2006, p. 56).
Em 1989 a outorga de pessoas jurídicas para as cooperativas se reinicia, e no ano seguinte a Prefeitura de Montevidéu passa a controlar a carteira de terras da cidade, assumindo um papel fundamental à volta do sistema de habitação cooperativista (CASTILLO, 2016, p. 28).
A crise de um modelo de expansão urbana ilimitada, o esvaziamento e deterioração das áreas centrais e intermediárias, os avisos de organizações como o ‘Grupo de Estudos Urbanos [faculdade de arquitetura FADU] sobre a degradação das áreas patrimoniais, os novos paradigmas de intervenção urbana e a vontade da própria população de não abandonar seus bairros, são alguns dos fatores que impulsionam o desenvolvimento de novas formas de atuação. – Alina del Castillo (2016)
Esses sintomas trazem à tona a questão da reabilitação de edifícios existentes, inicialmente no centro histórico (área que mais sofreu êxodo urbano), em sua maioria de relevância patrimonial. Na tentativa de amenizar esses problemas pontuados, a prefeitura cria, em 1990 o Programa Piloto de Reciclagem, um projeto de investigação composto por 6 edifícios iniciais, cujo propósito era:
(...) reformar construções antigas para habitação situadas nas áreas centrais da cidade por meio da ajuda mutua e da autogestão; controlar o processo de expulsão da população de baixa renda da cidade rumo às periferias; obter soluções habitacionais boas, dignas e de baixo custo, que demonstrem a viabilização financeira deste tipo de intervenção; experimentar sistemas construtivos de ajuda mútua para reforma de habitações antigas. – Alina del Castillo (2016)
Os produtos do programa piloto foram: Cooperativa de Usuarios por Ayuda Mutua Ana Monterroso (COVIAM); Associação Civil Palermo Recicla, Trabalha e Luta (PRETYL); Cooperativa de Usuarios por Ayuda Mutua de Mujeres Jefas de Familia (MUJEFA); Cooperativa de Viviendas Ciudad Vieja (COVICIVI 1 e 2); Cooperativa de Vivienda de Goes (COVIGOES); e Casa Verde (DELGADO, 2018, p. 22-26). Esse momento ficou conhecido como 3ª geração das cooperativas de habitação em Montevidéu.
Novas adaptações e preocupações: 4º Geração
A 4ª geração do cooperativismo de habitação representa o sistema na contemporaneidade. Na última década as Cooperativas de Habitação receberam um novo impulso graças ao apoio do governo. Cerca de 40% do financiamento público para habitação é destinado às cooperativas, o que computa a previsão de aproximadamente 10.000 habitações nos próximos 45 anos (CASTILLO, 2016, p. 28).
Uma das críticas apontadas à essa produção hoje em dia é a falta de adequação dos projetos às demandas contemporâneas, tanto na escala da unidade habitacional como sua inserção urbana:
Chamam a atenção intervenções de muito baixa densidade em áreas cujo custo do solo é muito elevado, com uma cobertura completa de infraestrutura e serviços, as quais seriam favorecidas intervenções mais contundentes à morfologia urbana; propostas com implantações fracas que cercam enormes corações de quarteirões vazios, destinados a estacionamentos e desvinculados do espaço público e das casas que os rodeiam, ou loteamento de áreas poucos consolidadas divididas entre várias cooperativas sem projetos urbanos integrados. Isso conduz à justaposição de fragmentos com lógicas próprias e a repetição de equipamentos, no lugar da articulação e complementação que propõem os conjuntos intercooperativos. – Alina del Castillo (2016)
Castillo propõem que neste debate, seja compreendido o valor cultural que a habitação cooperativista carrega, como movimento social, resistência à mercantilização da moradia e democracia direta.
Referências bibliográficas
BARAVELLI, José Eduardo. O Cooperativismo Uruguaio na Habitação Social de São Paulo: das cooperativas FUCVAM à Associação de Moradia Unidos de Vila Nova Cachoeirinha, 1-170f. 2006. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
CASTILLO, Alina del; PESSINA, Leandro. Revista Vivienda Popular, Montevidéu, v.28, 2016
CASTILLO, A.; OTERO, R.; SILVA, L. O. F.; VALLÉS R. Cooperativas de Vivienda em Uruguay: médio siglo de experiências. Montevideo: Facultad de Arquitetura UDELAR, 2015.
DELGADO, A. M. Viabilidad de Los Reciclajes por Ayuda Mutua. Montevideo: Facultad de Arquitetura UDELAR, PDF: parte 1, 58f; parte 2, 24f. Concedido em novembro de 2018.
NAHOUM, Benjamin. Una historia com quince mil protagonistas: las cooperativas de vivenda por ayuda mutua uruguayas. Montevideo: Intendencia Municipal de Montevideo, 2008.
Biografia resumida da autora
Bianca Araujo é arquiteta formada pela Escola da Cidade, estudou em Montevidéu o Sistema de Habitação Cooperativista Uruguaio na Facultad de Arquitectura, Diseño y Urbanismo de Montevidéu. Conheça mais de seu trabalho em: https://issuu.com/biancaaraujo07 e no instagram @bas.arquitetura
Ensaio produzido como trabalho final da disciplina Crítica na Arquitetura da Escola da Cidade em 2018, aborda de forma panorâmica e resumida a história do sistema habitacional social cooperativista uruguaio ao longo dos anos. E como os diversos cenários políticos e sócio-econômicos que o país viveu influenciou o sistema de habitação social. O ensaio foi publicado originalmente na Revista Cadernos de Pesquina da Escola da Cidade #8, outubro de 2019.